Quando, próximo do Natal de 2001, minha filha, aos 11 anos, deixou de falar comigo, foi uma surpresa. Quase seis meses antes de isso acontecer, ela me havia falado: “…pai, eu te amo do mesmo jeito. Você não me ensinou que o importante é as pessoas serem felizes? Então, eu quero que você seja feliz e vou continuar sendo sua filha e te amando“. Assim ela me acolhera, em seu terno coração infantil, depois de eu ter conversado
francamente sobre minha orientação homossexual.Enquanto ela me beijava o rosto e enxugava as minhas lágrimas, senti-me protegido por aquele terno ser, que demonstrava, em atitude, a educação que eu tanto me esforçara em proporcionar-lhe. Depois de quase seis meses desse acolhimento, eis que, repentinamente, antes de cortar contato comigo, ela me disse que eu “era desprezível”. Chorei e sofri por muitos anos, pois senti na atitude inocente de minha filha o peso opressivo da alienação parental. Por isso, quero compartilhar esta experiência com todos os tipos de pais.
Eu jogara limpo o tempo todo com minha ex-esposa. Mantive a fidelidade conjugal e, quando percebi que reprimir minha homossexualidade me tornava uma pessoa amargurada, melancólica, depressiva e, no limite extremo, com episódios recorrentes de síndrome do pânico, propus então a separação amigável. Mas minha ex-esposa, que muito me amava, propôs que eu deveria manter o casamento e ter “casinhos discretos”. Não aceitei…
Inicialmente, a nossa separação foi muito amigável e eu conseguia ver minha filha com alguma regularidade. Minha ex-esposa parecia aceitar bem a situação enquanto percebia que, mesmo separado, eu tinha somente “casinhos ocasionais”, ou seja, nada que apontasse para “namoro firme” ou “casamento”. Todavia, quando comecei um novo casamento (com outro homem) – que durou 10 anos – toda a relação mudou com minha ex-esposa e com minha filha.
A tolerância, como sempre, revela-se ambígua, pois há nela implícita uma lógica assimétrica de poder entre tolerante e tolerado. Nesse jogo social, experimentei exatamente o limite paradoxal e prático contido no conceito de tolerância. Com exceção de um irmão por parte de pai e sua família, todos os meus familiares viraram-me as costas, explicitando a sua posição de poder enquanto reguladores da tolerância ao definirem, tacitamente, até onde eu poderia ir com minha homossexualidade. A partir daí, iniciou-se o processo de alienação parental, uma verdadeira lavagem cerebral, materializada numa palavra grande, de quatro sílabas, colocada na boquinha inocente de minha filha: “des-pre-zí-vel…”
Sobre esta situação, creio que meu maior erro foi não ter forçado judicialmente que minha filha pudesse conviver comigo; foi ter esperado que, espontaneamente, à medida que amadurecesse, ela me procurasse, pois continuei procurando-a, mesmo sofrendo sucessivas negativas. Tirei uma lição importante sobre esta experiência: os efeitos de longo prazo da “alienação parental”.
O meu caso serve de alerta para todas as formas de pais divorciados (homo-, hetero- ou transexuais) com filhos pequenos. Nossos filhos são muito vulneráveis à sugestão ambiental de valores, ideias e preconceitos que distorcem a visão que podem vir a ter de pessoas, eventos e coisas; podem sofrer um processo de transferência de culpa, remorso e ressentimento por meio de chantagens emocionais, abertas ou filigranáticas, do núcleo familiar afetivamente hegemônico.
Penso agora o quanto que, naqueles seis meses entre ouvir “amor” e ouvir “desprezível”, a minha filha pode ter sofrido ao sentir remorso por ainda me amar e, com o tempo, sofrer por acreditar que não deveria, pois não “tinha pai de verdade”. Fico imaginando a sua passagem pela adolescência nas festas de pais da escola em que não estive, nos passeios que não fizemos, nos ensinamentos que deixei de passar… Afinal, quem quer por perto um pai “desprezível” – no meu caso, “desprezível” porque “viado”?
Mas nós, pais de todos os tipos e formas, devemos lembrar que, por mais que doa a permanência da rejeição de uma criança que se tornou adulta, crianças que sofrem alienação parental são tão vítimas quanto nós quando se tornam adultas. O sentimento que um ser nutre por outro não é natural, mas aprendido nas rizomas filigranáticas de performances de valores na vida social e familiar. Portanto, por mais que a criança que se tornou adulta passe a ser um adulto do qual se pode cobrar responsabilidade por suas condutas e escolhas afetivas, tal adulto que fora um dia a criança que sofrera alienação parental aprendeu o focar sentimentos e emoções sobre pessoas, eventos e coisas que não mudam se não nos fizermos presentes, forçando a nossa presença, fazendo-a lembrar de um afeto que já existiu e que fora esquecido por falta de prática em ambiente social favorável… Por tudo isso, penso que o meu maior erro foi não buscar orientação jurídica certa no tempo certo para evitar que o processo de alienação parental se consolidasse.
Embora a infância da afetividade de minha filha esteja perdida para sempre, pois somos agora dois adultos, estranhos um para o outro, podemos aprender a nos amar como pai e filha adultos. Afinal, adultos que nunca se conheceram desde a infância aprendem a se amar. A diferença, em nosso caso, é que somos pai e filha, vítimas de alienação parental…
Caros pais, a infância afetiva de minha filha está perdida para sempre, mas não a possibilidade de sua afetividade adulta. Então, olhem para seus filhos adultos como vítimas que precisam de sua ajuda, mesmo quando a criança de sua memória afetiva não esteja mais lá; mesmo que agora esta criança seja adulta e estranha para vocês!…No fundo, há nelas um paradoxo emocional: desejam que insistamos; desprezam-nos porque insistimos (fruto do remorso frente à possibilidade de nutrir alguma afeição que a família afetivamente hegemônica ensinara que era “desprezível”); e um sentimento de rejeição quando desistimos, terminando por acreditarem que, desde o começo, estavam certas em nos acharem “desprezíveis”.
Eis os efeitos paradoxais da alienação parental na subjetividade da criança que se tornou adulta; efeitos que imagino constituírem a resistência afetiva de minha filha adulta contra mim; efeitos que torço não afetarem suas escolhas afetivas vindouras…
Não perdi as esperanças… Recentemente, soube que minha filha tentou ingressar no curso de psicologia da UFRJ. Assim, quero manter a esperança de que, estudando psicologia no contexto atual de debates sobre sexualidade e direito, ela busque se desalienar de mim, pois o meu peito continua sendo o mesmo ninho de afeto e acolhimento que, por um breve tempo, também vi espelhado naquele ser lindinho que, aos 11 anos de idade, soubera me acolher com amor e generosidade…
Caros pais, a minha filha continua existindo na adulta para a qual sou um estranho… Não desistirei dela!… Não desistam de seus filhos!…
* RICARDO RIBEIRO BAETA é Bacharel e Licenciado em História pela UFRJ e Professor de História na Rede Pública da Ensino (RJ).
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